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Na encruzilhada: neste mundo de extremos, qual futuro buscamos?

Liliana Madrigal, cofundadora e vice-diretora da ACT 

Cacique Elewoka Waurá demonstra as marcas de seus ancestrais na caverna, enquanto partilhava conosco sua história. © Acervo ACT-US

Há anos os Waurá, nossos parceiros indígenas no Brasil, pediram nosso apoio para proteger a Caverna Kamukuaká. Esta caverna é profundamente sagrada para este povo. Durante milhares – sim, milhares – de anos, eles viajaram para a caverna para participar de cerimônias importantes em sua cosmologia, que os ligam aos seus antepassados, aos espíritos, ao mundo natural e uns aos outros. 

Antigamente, mesmo distante de suas aldeias, a caverna ainda fazia parte do território tradicionalmente ocupado pelos Waurá. Até que as forças do “desenvolvimento” alcançaram esse espaço sagrado, interferindo no acesso deste povo a uma parte essencial do seu território. Atualmente, Kamukuaká faz parte de uma imensa fazenda privada de soja. Ao tentar visitar seu local mais sagrado, os Waurá enfrentam dificuldades. 

Liderados pelo cacique e pajé Elewoka Waurá, os Waurá da aldeia Ulupuwene me levaram para conhecer esta caverna em 2019. Foi uma longa viagem de caminhão, por estradas esburacadas pelo quente sol da Amazônia Legal brasileira. Não muito tempo atrás, tínhamos viajado através de savanas e florestas tropicais muito vivas. Agora, as florestas desapareceram, encurraladas por monoculturas massivas. Blocos gigantes de campos verdes de soja eram intercalados com blocos igualmente gigantescos de argila vermelha completamente nua, como um atroz tabuleiro de xadrez. 

Um labirinto indecifrável de estradas fechadas serpenteava por esta paisagem devastada. Não vimos pássaros nem insetos. Podíamos ouvir apenas o lamento incessante de máquinas agrícolas colossais, que lançavam nuvens de poeira para trás enquanto rastejavam-se pelos campos. A atmosfera estava confortável e seca. A única água que pudemos ver foi acumulada nas marcas de pneus, manchadas de óleo, abertas pela maquinaria monstruosa. O fio de produtos químicos permeou a cabine do caminhão e meu nariz começou a sangrar. 

Lembrei-me de como Mark (presidente e cofundador da ACT) descreveu Rondônia, na Amazônia ocidental, em uma visita há alguns anos. De acordo com ele, o ar estava sufocado pelos incêndios e a fumaça era tão densa que os aviões não conseguiam decolar ou pousar. Os rios secaram, deixando os peixes encalhados em poças de tamanho cada vez menor, até morrerem e apodrecerem em grandes pilhas de odor forte. Durante toda a noite, o horizonte brilhou com uma cor vermelha lúgubre. Era como estar no inferno, me disse Mark. O mesmo aconteceu com minha jornada de pesadelo pelos campos de soja. Meus companheiros e eu não conversamos, cada um preso em seus próprios pensamentos, enquanto viajávamos por essa distopia industrial. 

Depois de horas no velho caminhão, chegamos à entrada da caverna sagrada. Do lado de fora da entrada, havia lixo apodrecendo ao sol e quase chorei. E então, entramos. 

Imediatamente o ar esfriou e tornou-se espesso, rico e vivo, com aromas que pareciam vir das profundezas da mata. Pinturas antigas, criadas pelos ancestrais dos Waurá, animavam grande parte das paredes. Elewoka apontou para um rio turbulento, repleto de pedras enormes em torno das quais se formavam piscinas. De onde veio aquele rio, perguntei-me. Lá fora era praticamente um deserto, mas aqui e lá dentro, a água efervescia de peixes saltitantes. 

Quedas no rio Tamitatoala, nos arredores da caverna Kamukuaká. © Acervo ACT-US 

Fora das piscinas naturais, enguias apareceram de repente, ameaçando-nos. Elas estalaram e mostraram os dentes, como se nos avisassem para não prosseguirmos. E havia mais alguma coisa na caverna, algo que não consigo articular muito bem: havia uma atmosfera no ar, como se a própria caverna estivesse viva. Senti a presença de algo inexplicável, inspirador, atemporal e até assustador. Observei enquanto os Waurá permaneciam em seu espaço sagrado e se renovavam silenciosamente naquela atmosfera. 

Na minha memória, a viagem a Kamukuaká assumiu desde então a forma de uma viagem pelo inferno até ao paraíso. Não era um paraíso romântico ao estilo Disney, nem uma versão bíblica do céu. Em vez disso, o que experimentei foi algo que só posso descrever como o mistério e o poder da Natureza em forma não diluída, não desfeita. 

O domínio implacável do mundo natural na busca da riqueza é mapeado pela nossa cultura ocidental como o caminho para o futuro. Mas a pandemia e os recentes tumultos desmascararam este modo de vida. Sob suas superfícies brilhantes encontramos corrupção do corpo e corrupção da alma. Este caminho para o futuro leva ao que chamo aqui de inferno. 

As nações esperam encontrar libertação do caos econômico e social do pós pandemia. Os efeitos severos das mudanças climáticas se repetem ainda mais devastadores em diferentes partes do mundo. Não haverá milagres nem respostas fáceis, não haverá nenhum anjo com uma espada flamejante descendo do alto para nos mostrar o caminho. Temos que encontrar o nosso rumo, passo a passo deliberado, na escuridão que nós mesmos criamos. 

Estamos numa encruzilhada. Que tipo de futuro queremos? Seguimos as visões raivosas daqueles que se colocam em conflito com a Natureza? Ou remodelamos as nossas sociedades para abrir espaço para outras vidas, outras realidades? 

Os nossos parceiros indígenas percorreram este segundo caminho, tendo sobrevivido às epidemias desastrosas que os nossos antepassados ocidentais trouxeram pela primeira vez para estas costas. Eles nos dizem pacientemente, repetidas vezes, que devemos viver com mais integridade nesta Terra. Só a humildade nos salvará, dizem. Podemos segui-los – ou melhor, podemos dar as mãos e viajar para o futuro, juntos. 

Foto aérea da aldeia Ulupuwene, TI Batovi, no Xingu, cercada pela floresta. © Acervo ACT-US 

No início de 2021, um dos anciões Kogi falou numa reunião em Sierra Nevada de Santa Marta, na Colômbia. Ainda estávamos na pandemia que se mantinha espalhando por todo o mundo. Naquela ocasião, ele alertou: 

As forças espirituais que originaram a natureza colocaram conhecimento em cada ser. Há conhecimento na tartaruga, na árvore, na pedra, na água… O ser humano tem que aprender com esse conhecimento. Mas temos matado esses seres e, ao matá-los, matamos também o conhecimento.  É por isso que sabemos cada vez menos. E é por isso que nos matamos, e pode ser que a natureza acabe respondendo a isso, matando-nos a todos.

Kogi Mamo, Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia

Refiz mentalmente os caminhos acidentados que percorri com os Waurá, tentando entender o que presenciei. Dois mundos, dois futuros. Um deles permeado pela terra seca e exausta sendo trabalhada até a morte. O outro, que é casa de uma misteriosa caverna antiga e seu rio, guardado por enguias, imbuído de vitalidade. Que esses dois mundos possam coincidir é tão improvável que a minha única resposta é sentir um pequeno lampejo de esperança de que possamos sobreviver a sequenciais calamidades. Que possamos escolher um futuro melhor para nós e para os inúmeros seres com os quais partilhamos a Terra. 

Texto publicado originalmente em 2021, no site da ACT-US.  

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