Para que as políticas de saúde avancem, é fundamental decolonizar a saúde indígena, aponta João Paulo Tukano
O antropólogo e analista em Saúde Indígena da ACT-Brasil avalia os esforços de atualização da Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, que acontece nesta semana em evento em Brasília
No último dia da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (CNSI), conversamos com Yupuri, conhecido também como João Paulo Barreto Tukano (seu nome em português). Em entrevista, o especialista avaliou as perspectivas apontadas no evento para a atualização da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e das diretrizes para o fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS).
O evento, que é realizado em Brasília desde o dia 14, foi organizado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Essa é a etapa nacional da inciativa que ocorre após mais de 300 encontros locais e distritais iniciados em 2018.
A última conferência nacional aconteceu em 2013 e, após quase uma década, os cerca de 305 povos indígenas brasileiros voltam a refletir juntos para apontar os caminhos necessários para as melhorias da Saúde Indígena no Brasil. Ainda nesta sexta, os cerca de dois mil indígenas que participam do evento analisam e votam em plenária as mais de 250 propostas que irão compor o relatório final. Mais informações sobre o evento podem ser consultadas pelo site.
De acordo com João, este é um momento histórico para as políticas públicas de saúde no país, pela integração de povos indígenas de diferentes regiões do Brasil para apontar as suas realidades e perspectivas em relação às práticas de cuidado e saúde. O grande desafio, de acordo com ele, é “decolonizar os conceitos” para viabilizar o diálogo entre os diferentes modelos de conhecimento.
No evento, os diálogos estão ordenados em sete eixos temáticos: “Articulação dos sistemas tradicionais indígenas de saúde”, “Modelo de atenção e organização dos serviços de saúde”, “Recursos humanos e gestão de pessoal em contexto intercultural”, “Infraestrutura e Saneamento”, “Financiamento”, “Determinantes Sociais de Saúde”, “Controle Social e Gestão Participativa”.
João participou da mesa de debate na segunda, dia 14, quando partilhou suas experiências com o tema central do encontro. Foto: Ascom CSN O evento reuniu por uma semana cerca de duas mil pessoas na capital nacional. Foto: Ascom CSN João é conhecido por sua trajetória como especialista em saúde indígena no Brasil. F João Paulo durante a conferência realizada entre 14 e 18 de novembro em Brasília. Foto: Ascom CSN
Yupuri é indígena do povo Ye’pamahsã (Tukano) e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas. Em agosto deste ano, conquistou o Prêmio Capes de Melhor Tese, com pesquisa que abordou o conhecimento tradicional dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro. O antropólogo é analista em Saúde Indígena na equipe da ACT-Brasil e compôs o time de especialistas do evento no eixo temático “Articulação dos Sistemas Tradicionais Indígenas de Saúde”.
Leia, abaixo, a entrevista completa:
João, qual foi o foco central da sua fala durante a participação no evento?
João: Nessa Conferência Nacional de Saúde Indígena, eu tive uma participação no eixo 1: “Articulação dos Saberes Tradicionais Indígenas de saúde. Minha participação se deu como profissional, como antropólogo, e, ao mesmo tempo, como alguém que desenvolve algumas atividades concretas. Entre elas, o Centro de Medicina Indígena em Manaus, o Bahserikowi, que existe há cinco anos. E também a experiência de acompanhar o Programa de Incentivo às Práticas e Saberes Indígenas de Cuidado em Saúde e a possibilidade de construção de um Centro de Medicina Indígena com os povos Tiriyó, na aldeia Urunai, com o apoio da ACT-Brasil.
Essas experiências foram fundamentais para mostrar para todos os participantes que a Medicina Indígena também é um sistema tão complexo quanto a biomedicina. Mas, são dois modelos diferentes. Isto é, o modelo biomédico – que opera a partir dos seus conceitos próprios, com o corpo estritamente constituído pelo biológico. E a Medicina Indígena – que opera a partir do conceito de um corpo como síntese dos elementos que constituem o mundo terrestre, um microcosmo, uma potência.
Mostrar essa diferenciação e suas particularidades a partir desses conceitos próprios foi fundamental para os participantes entenderem que a Medicina Indígena também é uma prática de prioridade à saúde tão complexa quanto a biomedicina. E que os dois modelos podem muito bem dialogar e serem usados dentro e fora das comunidades.
O que achou sobre a possibilidade de reunir povos e especialistas de diferentes regiões do país para discutir sobre a saúde indígena neste evento?
João: de Norte a Sul do Brasil, a gente ouviu falar dos povos indígenas que, nesse período da pandemia da covid-19, utilizaram sua própria medicina. Isto é, os Bahsese – os benzimentos -, em que os especialistas, conhecidos como pajés, entraram em ação para proteger suas comunidades, proteger as pessoas, curar as pessoas. E também teve muito destaque [nas falas durante o evento] o uso de plantas medicinais. De Norte a Sul do Brasil, os povos utilizaram as plantas medicinais e os seus conhecimentos e isso salvou muitas vidas.
Esses fatos foram muito colocados nas falas das lideranças e dos delegados que participaram da conferência. Isso significa dizer que, hoje, nós temos a possibilidade de concretizar uma política tão sonhada, que é a Política de Atendimento Diferenciado nas comunidades indígenas, utilizando as duas medicinas ao mesmo tempo. Ou seja, a biomedicina operada pelo DSEI e a medicina indígena, operada pelos especialistas indígenas.
Até chegar lá, vai ser um caminho muito longo, um caminho que precisamos percorrer. Não podemos ter pressa, mas precisamos trabalhar articulados com as instituições envolvidas, sejam governamentais ou não-governamentais e as lideranças locais. E precisamos sistematizar isso.
É preciso um processo organizado, é preciso ser pesquisado, não para validar a medicina indígena, mas para dar uma lógica. Porque, até então, a gente tem versões bastante difusas e diferenciadas. Precisamos sentar juntos, organizar, promover e mostrar os caminhos possíveis.
Nesse sentido, há uma grande possibilidade de que as Políticas Públicas também sejam praticadas a partir da lógica indígena. Sobretudo a Política de Atendimento Diferenciado aos Povos Indígenas. É possível que a medicina também esteja inclusa. Mas, como eu disse, será preciso ainda discutir, debater, sistematizar e pesquisar para construir modelos de atendimento intercultural.
João Paulo Barreto Tukano
Como você avalia as políticas Públicas vigentes para saúde indígena? Quais os avanços e lacunas, na sua opinião?
João: como eu disse, o avanço está acontecendo. Nessa conferência, por exemplo, esse tema foi muito relevante. Os conselheiros indígenas e não indígenas, e ou outros profissionais estiveram juntos discutindo essa temática e propondo diretrizes políticas. Essas diretrizes vão ser publicadas pelo Ministério da Saúde e Secretaria Especial de Saúde, como resultado dessa discussão.
E vão dar orientações sobre como trabalhar nas práticas de cura e autocuidado com especialistas tradicionais, sobre o uso de plantas medicinais, seu patenteamento, o financiamento, o apoio aos especialistas indígenas. Então, são avanços que estão acontecendo que, se forem levados a sério pelo Estado, vão ser implementados pelo DSEI [Distrito Sanitário Especial Indígena, que é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena – SasiSUS].
Todos os profissionais e todos os gestores públicos da Saúde Indígena, que estiveram reunidos nesta semana, estão cientes de que eles precisam levar a sério a implementação dessas políticas de articulação de cura e autocuidado com especialistas tradicionais.
Isso é um avanço muito grande, e constar no documento final do evento significa dizer que temos diretrizes muito bem claras do que pode ser feito. E esperamos que, daqui há algum tempo, essa política seja de fato uma Política de Atendimento Diferenciado.
Em relação aos debates em tono da saúde indígena, o que você acha importante ser acrescentado para resultados efetivos aos povos brasileiros?
João: O que eu acho muito importante é a gente parar de utilizar os jargões religiosos para traduzir nossos conhecimentos e nossas práticas de cuidado e saúde.
Como eu dizia na conferência, entre nós – povos indígenas do Alto Rio Negro, por exemplo – não existe essa noção de “sagrado”, de “fé”, de “rezador”, de “Deus”, de “espíritos”. Essas são categorias que foram utilizadas para traduzir os nossos conhecimentos. E daí vêm esses jargões que nós utilizamos para falar da medicina indígena. Como, por exemplo, “medicina ancestral”, “medicina milenar”, “saberes”, etc.. Essas são traduções.
Agora, é moda chamar nosso conhecimento de “etno”. Tudo se tornou “etno”: etnomatemática, etnohistória, etnobiologia, etnobotânica. Esses são jargões que as pessoas criam e inventam para traduzir nosso conhecimento.
Então, para a gente decolonizar é preciso, primeiro, nos livrar dessas nomenclaturas religiosas. Eu fico um pouco triste quando vejo o pessoal falar assim: “eu vou com rezador, eu vou com benzedor”, eu digo: “quem benze é o padre, é a freira, é o pastor. Porque eles são formados para isso, eles têm a linguagem própria para benzer as coisas”. Porque eles estudaram para isso.
É diferente do meu pai, que não estudou teologia. Ele não é padre, não é missionário. Mas, o fato de ele fazer bahsese, pegando determinados elementos e versando sobre eles, pode parecer equivalente a um padre dando benzimento a uma água, uma vela…mas não é.
Eu costumo dizer que, quando meu pai pega qualquer elemento para cuidar da saúde das pessoas, ele evoca qualidades ou substâncias curativas ou que abrandam a dor. Então, é uma manipulação metaquímica das coisas e também uma manipulação metafísica das coisas. Esse nível é muito incompreensível para a ciência, porque a ciência opera a partir das lógicas objetivas, palpáveis, físicas e químicas, né. Mas a nossa medicina opera por questões metafísicas, metaquímicas.

Portanto, para nós, povos indígenas, a palavra é concreta, não é abstrata. A palavra é esse instrumento capaz de evocar as coisas para o bem ou para o mal.
João Paulo Barreto Tukano, antropólogo e analista em Saúde Indígena da ACT-Brasil.
Foto: Amanda Lelis
Eu costumo dizer: assim como o médico, quando dá injeção, escolhe uma dose certa e isso é um remédio. Mas, quando ultrapassa daquela dose certa, ela se torna veneno. Do contrário, também é a mesma coisa, os especialistas indígenas conhecem muito bem quando o que fazem é remédio ou quando também pode ser veneno as mesmas formulas de bahsese (benzimentos).
E essas são coisas que a ciência ou a biomedicina ainda não entenderam. E não vão entender tão fácil, se não fizermos um trabalho bem sistemático, um trabalho bem detalhado. Esse é um desafio, no meu ponto de vista: decolonizar os conceitos para colocar outras linguagem, que possam possibilitar esse diálogo entre dois modelos diferentes de conhecimento.
Texto: Amanda Lelis