Brasil apresenta experiência de medicina indígena no Suriname
“É necessário mostrar e valorizar o conhecimento do povo Tiriyó. Na época do meu pai e do meu avô, os indígenas tinham medo de expor que usávamos remédios tradicionais, produzidos por nós”. Com essa frase, o enfermeiro Demétrio Tiriyó resume a importância da participação dele e de outras lideranças indígenas na Conferência Sistemas de Saúde Tradicionais e Integrativos 2025, promovida pela ACT-Guianas em Paramaribo, no Suriname, entre 11 e 13 de março. A conferência teve apoio da Medical Mission Primary Health Care, que atua no atendimento a comunidades vulneráveis do Suriname, e da Organização Panamericana de Saúde (OPAS).
Demétrio apresentou o Programa Ankarani, cujo propósito é o incentivo e a retomada das práticas de saúde tradicionais indígenas dos povos que vivem no lado oeste da Terra Indígena (TI) Parque Tumucumaque, entre os estados do Pará e do Amapá, território que faz fronteira com o Suriname. E foi sobre a necessidade de se integrar a medicina ocidental às medicinas tradicionais das comunidades indígenas e de outros povos que a conferência se desenvolveu. “A iniciativa da conferência reforçou o valor cultural, físico e espiritual das práticas medicinais tradicionais, ao mesmo tempo em que promoveu uma abordagem intercultural à saúde”, explica a diretora da ACT-Guianas, Minu Parahoe.
O evento reuniu especialistas de cura, aprendizes, pesquisadores, formuladores de políticas e profissionais de saúde de diversas nacionalidades para trocar conhecimentos, discutir melhores práticas e explorar caminhos para um modelo de saúde integrativo. Do Brasil, participaram do evento as lideranças indígenas Demetrio Amisipa Tiriyó, Amisipa Kapai Tiriyó, Ryan Tiriyó Waiwai e Davi Kaxuyana, que colaboraram junto com a ACT-Brasil na criação do Programa Ankarani. Também estiveram presentes a analista de campo da ACT-Brasil, Lirian Ribeiro, e Mark Plotkin, um dos fundadores da ACT, dos Estados Unidos.
Valorizar as medicinas indígenas e transmitir o conhecimento ancestral para a juventude era um sonho antigo de lideranças como Amisipa Kapai Tiriyó, pai de Demétrio. Formações sobre plantas medicinais com jovens indígenas são parte das atividades que ocorrem no Programa Ankarani, e Davi Kaxuyana é um dos professores que dão aulas práticas no Centro Guardiões do Conhecimento Kapai e Aretina, inaugurado em outubro de 2024 na aldeia Urunai. O programa é resultado da parceria entre a ACT-Brasil e a Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Kaxuyana e Txikuyana (APITIKATXI).
“Acredito que a experiência do Programa Ankarani serviu de exemplo na conferência, principalmente porque temos a mobilização de jovens aprendendo sobre a nossa medicina”, disse Demétrio, que avaliou como positiva as trocas entre os participantes da conferência, completando que deseja levar experiências que conheceu no Suriname para apresentar no território.
A conferência ainda teve espaço para apresentação de técnicas e de materiais utilizados em tratamentos de saúde. Do Brasil, além de contar sobre o Programa Ankarani, os participantes mostraram alguns recursos que extraem da floresta e que podem ser utilizados para o tratamento de picadas de cobra, malária, febre e algumas doenças gastrointestinais.


Fortalecer e integrar nas políticas públicas – A medicina indígena pode ser descrita como um sistema próprio de conhecimentos e práticas de cuidado de saúde. E ela se difere da medicina não-indígena ao não tratar somente do cuidado do corpo, mas também do espírito e da proteção do território, do fortalecimento da cultura e dos seus processos próprios de aprendizagem, passando pela segurança alimentar, e autogestão dos territórios.
O conhecimento e as práticas da medicina indígena devem estar presentes no sistema oficial de saúde, e reconhecer os “remédios” e tratamentos dos povos indígenas e comunidades tradicionais não é o único desafio. Durante a conferência, a antropóloga e analista de campo da ACT-Brasil, Lirian Ribeiro, explica que também foram debatidos temas como: a formação de pesquisadores indígenas para o trabalho de pesquisa e documentação, do que pode ser dito e escrito, das práticas e saberes de suas medicinas; e aindaa preservação da biodiversidade, já que é na floresta que estão as plantas medicinais.
O debate ainda incluiu o tema da adoção de protocolos de atendimento diferenciados, em ambientes hospitalares, para os indígenas. “Protocolos culturalmente adequados podem garantir que povos de diferentes culturas tenham, por exemplo, direito a um tratamento específico e diferenciado aliando o tratamento em saúde com suas medicinas e a medicina ocidental”, diz Lirian, lembrando que foi discutido também, sobre a necessidade de que os conhecimentos tradicionais sejam protegidos e que os povos indígenas e comunidades tradicionais tenham o direito de escolher o que pode e o que não pode ser compartilhado com o sistema oficial de saúde.
Para a ACT-Guianas, o Suriname avançou um pouco mais no debate da integração entre as medicinas durante a conferência, onde foi assinado um Memorando de Entendimento (no inglês, a sigla é MOU) entre diversas instituições governamentais, como o Ministério da Saúde do Suriname e, também, não governamentais, com recomendações de políticas públicas para que as medicinas tradicionais e integrativas sejam reconhecidas no país.
“Este MOU representa um compromisso formal para o avanço da saúde tradicional e integrativa no Suriname, garantindo a colaboração estruturada entre entidades governamentais, prestadores de cuidados de saúde e comunidades indígenas”, lembra Minu Parahoe, que assinou o documento pela ACT-Guianas.

Parcerias na rede ACT – Não é a primeira vez que a ACT-Brasil realiza atividades relacionadas ao fortalecimento das medicinas indígenas junto da ACT-Guianas. Entre 2021 e 2022 foram realizados intercâmbios entre comunidades do Suriname, da Guiana e do Brasil, tendo como temas o desenvolvimento de planos de vida, a medicina indígena e tradicional e o monitoramento comunitário. Além disso, em 2024, a inauguração do Centro Guardiões do Conhecimento, que é base para as atividades do Programa Ankarani na TI Parque Tumucumaque, contou com a presença de representantes dos povos indígenas do sul do Suriname, membros da ACT-Guianas e ministérios da Saúde do Suriname e do Brasil.
O coordenador de programas da ACT-Brasil, Ayrton Vollet Neto, explica que por meio dos intercâmbios os povos indígenas e pessoas que fazem parte de instituições públicas podem conhecer e vislumbrar outras formas de governança que cada contexto nacional traz. “Pode resultar também, a longo prazo, em acordos bilaterais entre as associações indígenas e até mesmo envolver órgãos governamentais, como o Ministério da Saúde”, completa Neto.