Retorno à Ulupuwene (MT): conservação liderada por indígenas

A cofundadora e vice-presidente executiva da ACT, Liliana Madrigal, com Eleukah e Kapi Waurá em Ulupuwene (2007). Foto: Bento Viana.

O povo Wauja (ou Waurá), que vive na aldeia Ulupwuene, dentro do Território Indígena Batovi, na bacia do rio Xingu (MT), recebeu, na última semana de abril a visita especial de parte da equipe da ACT-Brasil e da ACT-US (Estados Unidos). A ACT possui uma relação histórica com esta aldeia e a visita teve o objetivo de avaliar o desenvolvimento dos projetos realizados pela Associação Indígena Ulupuwene’, em parceria com a ACT. 
 
A relação comunidade com a ACT-US começou há 21 anos, quando a organização, desde os Estados Unidos, apoiou diversos grupos indígenas no mapeamento de suas realidades culturais e práticas tradicionais de uso de recursos naturais. E várias outras atividades continuaram a ser implementadas com a fundação da ACT-Brasil em 2019. 

O relato a seguir foi feito pela co-fundadora e vice-presidente executiva da ACT, Liliana Madrigal, que retornou à aldeia após seis anos sem visitar a localidade: 

A visita das equipes da ACT-Brasil e da ACT-US no viveiro de tabaco em Uupuwene.
Foto: Whajamani Waurá.

Ulupuwene tem um lugar especial no coração da ACT. 

É uma pequena aldeia de corajosos indígenas da etnia Wauja, ou Waurá, liderados pelo cacique e pajé Eleukah e sua esposa Kapi, ela também uma poderosa pajé. Nos conhecemos há pouco mais de duas décadas e, desde então, juntos, provamos o que é possível fazer por meio do trabalho árduo, e de um relacionamento construído na base da confiança. 

Embora eu tenha ido ao Ulupuwene muitas vezes ao longo dos anos, esta visita – após seis anos de ausência – foi especialmente emocionante. A longa jornada para chegar até lá mudou. O que antes era uma viagem de ônibus de 18 horas desde Brasília (DF), seguida por um voo curto, uma viagem em um caminhão velho até a margem de um rio e, finalmente, uma travessia de barco de 90 minutos até chegar à comunidade. Todo esse percurso, hoje, foi substituído por uma estrada de terra que leva diretamente à comunidade. 

A viagem de 1.300 quilômetros ofereceu uma oportunidade visível para testemunhar as mudanças drásticas no uso da terra e as crescentes ameaças ecológicas enfrentadas pelas comunidades indígenas. Campos intermináveis de soja, milho, sorgo e gergelim se estendiam por quilômetros, interrompidos apenas por uma árvore solitária ou uma ema (uma avestruz sul-americana) perplexa. Linhas tênues, à distância, marcavam os limites dos territórios indígenas — como frágeis defesas contra a crescente expansão agrícola. Ver essas comunidades enfrentarem a extinção de forma tão direta foi profundamente preocupante. 

Uma ema, a maior espécie de ave da América do Sul, procura por comida em uma plantação de gergelim. Foto: Liliana Madrigal.

Mas tudo mudou quando entramos em Ulupuwene. A diversidade exuberante daquela área de transição entre o Cerrado e Amazônia retornou. Ouvimos pássaros, avistamos antas e fomos envolvidos pelos sons vibrantes da floresta. Ao chegarmos ao centro da aldeia, toda a comunidade nos recebeu em trajes tradicionais, dançando e celebrando. Foi avassalador – da melhor maneira possível. Lutei contra as lágrimas. Realmente parecia voltar para a família. 

Essa visita marca um momento importante para a ACT. Desde que a ACT-Brasil foi fundada, em 2019, aprofundamos nosso compromisso de apoiar os esforços de conservação liderados por indígenas no país. Nosso relacionamento de longa data com a aldeia Ulupuwene foi formalizado por meio de uma parceria entre a ACT-Brasil e a Associação Indígena Ulupuwene (AIU). O objetivo desta visita foi ver como os projetos desenvolvidos por meio desta parceria estão se concretizando no território – e continuar cocriando o que virá a seguir. 

Ao longo dos anos, a ACT e Ulupuwene colaboraram estreitamente para construir uma comunidade – literalmente do zero. Por quê? Porque Ulupuwene é um local sagrado ancestral, um lugar de profunda importância cultural e espiritual que ficou fora dos limites originais do Parque Indígena do Xingu, quando este foi criado em 1961.  

O falecido Cacique Atamai pediu apoio à ACT para reassentar parte de seu povo ali. Quando a decisão de se mudar foi finalmente tomada, a ACT forneceu o financiamento para apoiar esse empreendimento ambicioso. A primeira fase foi modesta – apenas um barco, um motor, comida, redes, lonas e lanternas – mas dentro de um ano, várias malocas de sapé (com sua arquitetura arredondada) haviam sido construídas para as famílias se estabelecerem. 

Mulheres Aura compartilham sobre seu projeto de vestuário tradicional em Ulupuwene.
Foto: Whajamani Waurá

Na época, pouco a pouco, conversas entre a liderança Eleukah, as mulheres, os anciãos, outros líderes tribais e eu despertaram a visão de uma uma comunidade de referência para o Xingu – fundamentada na tradição e com uma forte transferência de conhecimento, autonomia e sustentabilidade. Nós sonhamos juntos. Às vezes, as ideias eram extravagantes. Mas sempre voltávamos ao que era possível – sem comprometer a cultura, a dignidade ou o bem-estar da comunidade. 

A visão de Eleukah era cristalina: eles precisavam de acesso a água potável, sistemas tradicionais de alimentação – roças (hortas de vegetais e plantas medicinais), uma associação formal – a Associação Indígena Ulupuene (AIU) – para a governança, uma escola projetada com arquitetura tradicional, clínicas, acesso à internet e programas de capacitação para atender aos padrões nacionais e regionais de saúde e educação. 

Ulupuwene permaneceu fiel a essa visão. Apesar dos crescentes impactos das mudanças climáticas – incêndios, inundações, secas – e das ameaças à segurança alimentar, o povo dessa comunidade permanece resiliente. A pesca tradicional, que antes era a principal fonte de proteína e conexão cultural para os Waurá, sofreu devido ao aumento da pesca esportiva e ao aumento da poluição dos rios.  

Antes intocáveis, seus cursos d’água, agora, estão sendo contaminados pelo escoamento agrícola – pesticidas, fertilizantes e sedimentos de fazendas industriais próximas – o que degrada a qualidade da água e a vida aquática. No entanto, Eleukah e sua comunidade continuam a manter suas tradições, sua medicina, sua língua e sua alegria. Eles riem, dançam e relembram cada visita com detalhes surpreendentes. 

A equipe da ACT e membros da comunidade Waurá na réplica de uma caverna considerada sagrada em Ulupuwene. Foto: Crisbellt Alvarado.

Hoje, Ulupuwene é reconhecida como uma das comunidades mais respeitadas da região – não apenas por permanecer fiel às suas raízes culturais, mas por conectar, com sucesso, o conhecimento ancestral com tecnologias limpas modernas. Há muitas necessidades e desafios que ainda existem, mas eles são guerreiros orgulhosos – guerreiros. Sua história é um exemplo poderoso do que é possível realizar, por meio de de parcerias de longo prazo e baseadas na confiança, como a que Ulupuwene compartilha com a ACT. 

A passagem do tempo deixa a sua marca inconfundível — não apenas em nossos rostos à medida que envelhecemos, mas também quando vejo os bebês, que um dia segurei, agora adultos, como mães e até avós. Sinto imenso orgulho e gratidão pela oportunidade de trilhar este caminho ao lado de Eleukah e de sua extraordinária comunidade. 

Liliana Madrigal, co-fundadora e vice-presidente executiva da ACT. 

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