Retorno à Ulupuwene (MT): conservação liderada por indígenas

O povo Wauja (ou Waurá), que vive na aldeia Ulupwuene, dentro do Território Indígena Batovi, na bacia do rio Xingu (MT), recebeu, na última semana de abril a visita especial de parte da equipe da ACT-Brasil e da ACT-US (Estados Unidos). A ACT possui uma relação histórica com esta aldeia e a visita teve o objetivo de avaliar o desenvolvimento dos projetos realizados pela Associação Indígena Ulupuwene’, em parceria com a ACT.
A relação comunidade com a ACT-US começou há 21 anos, quando a organização, desde os Estados Unidos, apoiou diversos grupos indígenas no mapeamento de suas realidades culturais e práticas tradicionais de uso de recursos naturais. E várias outras atividades continuaram a ser implementadas com a fundação da ACT-Brasil em 2019.
O relato a seguir foi feito pela co-fundadora e vice-presidente executiva da ACT, Liliana Madrigal, que retornou à aldeia após seis anos sem visitar a localidade:

Foto: Whajamani Waurá.
Ulupuwene tem um lugar especial no coração da ACT.
É uma pequena aldeia de corajosos indígenas da etnia Wauja, ou Waurá, liderados pelo cacique e pajé Eleukah e sua esposa Kapi, ela também uma poderosa pajé. Nos conhecemos há pouco mais de duas décadas e, desde então, juntos, provamos o que é possível fazer por meio do trabalho árduo, e de um relacionamento construído na base da confiança.
Embora eu tenha ido ao Ulupuwene muitas vezes ao longo dos anos, esta visita – após seis anos de ausência – foi especialmente emocionante. A longa jornada para chegar até lá mudou. O que antes era uma viagem de ônibus de 18 horas desde Brasília (DF), seguida por um voo curto, uma viagem em um caminhão velho até a margem de um rio e, finalmente, uma travessia de barco de 90 minutos até chegar à comunidade. Todo esse percurso, hoje, foi substituído por uma estrada de terra que leva diretamente à comunidade.
A viagem de 1.300 quilômetros ofereceu uma oportunidade visível para testemunhar as mudanças drásticas no uso da terra e as crescentes ameaças ecológicas enfrentadas pelas comunidades indígenas. Campos intermináveis de soja, milho, sorgo e gergelim se estendiam por quilômetros, interrompidos apenas por uma árvore solitária ou uma ema (uma avestruz sul-americana) perplexa. Linhas tênues, à distância, marcavam os limites dos territórios indígenas — como frágeis defesas contra a crescente expansão agrícola. Ver essas comunidades enfrentarem a extinção de forma tão direta foi profundamente preocupante.

Mas tudo mudou quando entramos em Ulupuwene. A diversidade exuberante daquela área de transição entre o Cerrado e Amazônia retornou. Ouvimos pássaros, avistamos antas e fomos envolvidos pelos sons vibrantes da floresta. Ao chegarmos ao centro da aldeia, toda a comunidade nos recebeu em trajes tradicionais, dançando e celebrando. Foi avassalador – da melhor maneira possível. Lutei contra as lágrimas. Realmente parecia voltar para a família.
Essa visita marca um momento importante para a ACT. Desde que a ACT-Brasil foi fundada, em 2019, aprofundamos nosso compromisso de apoiar os esforços de conservação liderados por indígenas no país. Nosso relacionamento de longa data com a aldeia Ulupuwene foi formalizado por meio de uma parceria entre a ACT-Brasil e a Associação Indígena Ulupuwene (AIU). O objetivo desta visita foi ver como os projetos desenvolvidos por meio desta parceria estão se concretizando no território – e continuar cocriando o que virá a seguir.
Ao longo dos anos, a ACT e Ulupuwene colaboraram estreitamente para construir uma comunidade – literalmente do zero. Por quê? Porque Ulupuwene é um local sagrado ancestral, um lugar de profunda importância cultural e espiritual que ficou fora dos limites originais do Parque Indígena do Xingu, quando este foi criado em 1961.
O falecido Cacique Atamai pediu apoio à ACT para reassentar parte de seu povo ali. Quando a decisão de se mudar foi finalmente tomada, a ACT forneceu o financiamento para apoiar esse empreendimento ambicioso. A primeira fase foi modesta – apenas um barco, um motor, comida, redes, lonas e lanternas – mas dentro de um ano, várias malocas de sapé (com sua arquitetura arredondada) haviam sido construídas para as famílias se estabelecerem.

Foto: Whajamani Waurá
Na época, pouco a pouco, conversas entre a liderança Eleukah, as mulheres, os anciãos, outros líderes tribais e eu despertaram a visão de uma uma comunidade de referência para o Xingu – fundamentada na tradição e com uma forte transferência de conhecimento, autonomia e sustentabilidade. Nós sonhamos juntos. Às vezes, as ideias eram extravagantes. Mas sempre voltávamos ao que era possível – sem comprometer a cultura, a dignidade ou o bem-estar da comunidade.
A visão de Eleukah era cristalina: eles precisavam de acesso a água potável, sistemas tradicionais de alimentação – roças (hortas de vegetais e plantas medicinais), uma associação formal – a Associação Indígena Ulupuene (AIU) – para a governança, uma escola projetada com arquitetura tradicional, clínicas, acesso à internet e programas de capacitação para atender aos padrões nacionais e regionais de saúde e educação.
Ulupuwene permaneceu fiel a essa visão. Apesar dos crescentes impactos das mudanças climáticas – incêndios, inundações, secas – e das ameaças à segurança alimentar, o povo dessa comunidade permanece resiliente. A pesca tradicional, que antes era a principal fonte de proteína e conexão cultural para os Waurá, sofreu devido ao aumento da pesca esportiva e ao aumento da poluição dos rios.
Antes intocáveis, seus cursos d’água, agora, estão sendo contaminados pelo escoamento agrícola – pesticidas, fertilizantes e sedimentos de fazendas industriais próximas – o que degrada a qualidade da água e a vida aquática. No entanto, Eleukah e sua comunidade continuam a manter suas tradições, sua medicina, sua língua e sua alegria. Eles riem, dançam e relembram cada visita com detalhes surpreendentes.

Hoje, Ulupuwene é reconhecida como uma das comunidades mais respeitadas da região – não apenas por permanecer fiel às suas raízes culturais, mas por conectar, com sucesso, o conhecimento ancestral com tecnologias limpas modernas. Há muitas necessidades e desafios que ainda existem, mas eles são guerreiros orgulhosos – guerreiros. Sua história é um exemplo poderoso do que é possível realizar, por meio de de parcerias de longo prazo e baseadas na confiança, como a que Ulupuwene compartilha com a ACT.
A passagem do tempo deixa a sua marca inconfundível — não apenas em nossos rostos à medida que envelhecemos, mas também quando vejo os bebês, que um dia segurei, agora adultos, como mães e até avós. Sinto imenso orgulho e gratidão pela oportunidade de trilhar este caminho ao lado de Eleukah e de sua extraordinária comunidade.
Liliana Madrigal, co-fundadora e vice-presidente executiva da ACT.

