Há uma revolução silenciosa na área da saúde, que está acontecendo no coração da Amazônia, longe dos prédios envidraçados das capitais. Essa revolução não vem dos laboratórios das grandes indústrias farmacêuticas. Ela nasce das florestas, dos rios, das mãos e das vozes dos povos indígenas do Brasil, e está sendo ampliada, aos poucos, por esforços do Poder Público, de pesquisadores e de organizações não governamentais.
Essa foi a principal mensagem do webinar Caminhos de Cura: as medicinas indígenas no Sistema oficial de Saúde, realizado pela Amazon Conservation Team Brasil (ACT-Brasil) no dia 22 de maio de 2025 (Dia Internacional da Biodiversidade), que propôs um diálogo entre a medicina ocidental e as medicinas indígenas que estão sendo praticadas e valorizadas nos territórios, na perspectiva da gestão do sistema de saúde indígena pelo Poder Público.
E essa revolução não é apenas sobre direitos dos povos originários. É sobre saúde pública, equidade e também ciência. “Sempre tivemos nossa ciência”, afirmou, durante o encontro, o antropólogo João Paulo Tukano, indígena do povo Yepamahsã (Tukano) e fundador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, em Manaus (AM). “O que a ciência ocidental chama de medicina é só uma entre muitas formas de cuidar da saúde. A nossa é outra. E temos tecnologias desenvolvidas há mais de 12 mil anos”, lembra João, que também atuou como analista de campo da ACT-Brasil.
Por séculos, o conhecimento dos pajés, parteiras e curadores sustentou as comunidades indígenas. Suas farmácias sempre foram as florestas. Seus hospitais, as próprias aldeias. Mas, por muito tempo, esse saber não foi visto como um necessário e complexo sistema de conhecimentos de um povo, com métodos próprios de prevenção, cura e promoção da saúde. Agora, isso está mudando. Lideranças como João Paulo lutam contra um sistema que, por muito tempo, tratou o conhecimento indígena como inferior — ou até mesmo, irrelevante.

Programa Ankarani – A defesa das medicinas indígenas é uma das frentes de trabalho da ACT- Brasil. Junto com lideranças indígenas dos povos que vivem no lado Oeste da Terra Indígena (TI) Parque do Tumucumaque, entre o Pará e o Amapá e próximo à fronteira com o Suriname, foi criado o Programa Ankarani de Incentivo à Medicina Indígena.
A perspectiva deste trabalho nasceu do compromisso institucional da organização de fazer com que as medicinas indígenas “possam seguir salvando vidas, construindo saúde, construindo possibilidades não só para os seres humanos, não só para os povos indígenas, mas também para as águas, para as terras e as florestas do território”, explicou o diretor executivo da ACT-Brasil, Luiz Cláudio Silva.
O programa tem seis eixos que vão desde o ensino e aprendizagem nas próprias aldeias até a orientação sobre os direitos indígenas para a proteção de seus conhecimentos tradicionais, inclusive instrumentos de salvaguarda associados ao patrimônio genético, além da construção de instrumentos jurídicos coletivos para fortalecer a proteção desses saberes.
O enfermeiro Demétrio Amisipa Tiriyó (assim como seu pai, Kapay Amisipa Tiriyó, já falecido), é uma das lideranças que participou ativamente da construção do programa. E ele não está sozinho. Na sua comunidade, uma nova geração de jovens de diversas aldeias está vivenciando formações com especialistas indígenas do território no Centro Guardiões do Conhecimento Kapai e Aretina. O espaço foi idealizado, construído e gerido pelas próprias lideranças indígenas, inaugurado em outubro de 2024 na aldeia Urunai, dentro da TI Parque do Tumucumaque. Ali, o conhecimento é transmitido na língua Tiriyó, garantindo não só a preservação, mas também a soberania cultural desse saber.
Demétrio lembra que a iniciativa do programa foi, principalmente, garantir que o conhecimento dos próprios povos do Tumucumaque pudesse ser transmitido a outras gerações das etnias Tiriyó e Kaxuyana, presentes no lado Oeste da Terra Indígena. Como no caso do uso de plantas medicinais, muitas delas encontradas no território, que faz fronteira com o Suriname. “Quando chegou a COVID-19, e o mundo inteiro parou, nós sobrevivemos usando nossas plantas”, afirma Demétrio. “Os remédios que fazemos na floresta salvaram nosso povo.”
Airton Vollet Neto, coordenador de programas da ACT-Brasil, complementa informando que nessas formações, os “professores e professoras” são parteiras, raizeiras e especialistas de cura indígenas do próprio território, como é o caso de Ryan Tiriyó Waiwai, especialista em plantas medicinais que mora na aldeia Tumucumaque e que também participou do webinar.
O investimento em formações é um grande eixo norteador do Programa Ankarani, possibilitando que as comunidades “coloquem novamente estes especialistas em um lugar de respeito, de maior valorização do trabalho que eles fazem e sempre fizeram”, lembra Neto, destacando que os protagonistas são os próprios povos indígenas. “Estamos aqui para caminhar junto, não para liderar”, resumiu o coordenador.
Política em construção – Profissionais indígenas também assumem protagonismo na execução e criação de políticas públicas para além de suas aldeias. O próprio Demétrio Amisipa Tiriyó é um exemplo. O enfermeiro é hoje responsável pelo Programa Articulando Saberes em Saúde Indígena, dentro do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Amapá e Norte do Pará. OS DSEIs fazem parte do subsistema de Atenção à Saúde Indígena, são ligados à Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (SESAI-MS), e foram criados para organizar e prestar serviços de saúde na atenção básica para as populações indígenas em seus territórios. Existem 34 ao todo, no Brasil.
Também participaram do webinar Putira Sacuena, mulher indígena do povo Baré e atual diretora do Departamento de Atenção Primária À Saúde Indígena, vinculado à SESAI-MS, e Kellen Guarani Kaiowá, indígena do povo Guarani Kaiowá e coordenadora de Formação e Interculturalidade na Unidade de Saúde Indígena, da Agência de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AgSUS). Criada para apoiar as políticas do SUS, a AGSUS também apoia a SESAI na execução de políticas no contexto da saúde indígena.
Estes profissionais estão construindo iniciativas que valorizam as medicinas indígenas – no plural, pois cada etnia traz o seu próprio sistema. “Nós não somos povos ‘tradicionais’. Somos povos originários. E nossas medicinas não são ‘complementares’. Elas são principais. Elas são válidas. E elas funcionam”, disse Putira Sacuena durante o encontro virtual. Sua fala é contundente no que diz respeito ao reconhecimento das medicinas indígenas frente à chamada medicina ocidental, que até então orienta o sistema de saúde.
Mas a política avança, no momento, com diversas iniciativas que estão sendo implementadas. Como o Programa Nacional de Medicinas Indígenas, que tem como objetivo reconhecer formalmente os sistemas médicos indígenas como parte integrante do SUS.
Segundo ela, é uma forma da sociedade brasileira “reconhecer que existem outras tecnologias de cuidado e saúde a partir dos nossos territórios. Da mesma forma que existem outras tecnologias também trazidas de outros países, nós também temos a nossa”, diz Putira, que é doutora e mestre em Bioantropologia.
E não é um gesto simbólico. Já estão em desenvolvimento projetos para a criação de hospitais interculturais, como a proposta do Hospital de Retaguarda dos Povos Indígenas, cuja construção foi anunciada pelo Governo Federal no ano passado, em Boa Vista (RR). A proposta é de que o atendimento seja direcionado para a população indígena Yanomami e outras etnias que vivem em Roraima, no extremo Norte do Brasil.
Gestor da Unidade de Saúde Indígena da Agência Brasileira da AgSUS, Edson Oliveira explicou, durante o webinar, que este hospital está sendo planejado para ter atendimento médico e de especialistas indígenas, cuidados diferenciados com a alimentação e espaços para rituais e preparação de alimentos tradicionais.
Tanto Oliveira quanto Kellen destacaram em suas falas que existem muitos desafios para que as medicinas indígenas sejam cada vez mais reconhecidas dentro do sistema público de saúde. Para além de pensar estruturas físicas de atendimento, é preciso, também, contribuir com a qualificação dos profissionais que atendem aos indígenas. “Não tem como debater saúde sem discutir formação”, disse o gestor da AgSUS, lembrando que necessidade de se valorizar as habilidades interculturais de profissionais que são contratados.

Biodiversidade – À medida em que o Brasil se prepara para sediar a COP 30, no próximo ano, a conexão entre biodiversidade e saúde indígena se torna impossível de ignorar. As mesmas florestas que guardam os saberes das medicinas tradicionais são também as que capturam carbono e protegem o planeta. Proteger uma é proteger a outra.
“É urgente entender as medicinas indígenas como ciências, porque as medicinas indígenas caminham de mãos dadas com a biodiversidade”, concluiu, no final do encontro virtual, a antropóloga e analista de campo da ACT-Brasil, Lirian Ribeiro Monteiro.
Assim como a cultura não é estática, a ciência também não é, e ambas se reinventam e produzem o futuro, continuou Lirian, trazendo o questionamento sobre “qual é o futuro que nós queremos”. “Um futuro com uma só medicina hegemônica, se sobrepondo a todas as outras, ou um futuro onde as culturas, as ciências e as suas medicinas possam prosperar em seus diálogos e suas práticas, trabalhando de forma complementar?”
Num tempo em que os debates sobre saúde global são dominados por vacinas, patentes e grandes cadeias hospitalares, os curadores indígenas do Brasil oferecem uma lição diferente: saúde não é só tratar doenças, é viver bem — em harmonia com a terra, com a comunidade e com a própria cultura.
*Artigo de Débora Menezes e Paulo Lyra, jornalista e conselheiro da ACT-Brasil.



