“Pra você conhecer, você tem que andar”
por Nian Pissolati

Entre abril e maio de 2022 acontecia a 1ª oficina para elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Paraná do Boá-Boá, na aldeia Jutaí, localizada na bacia do Japurá, no Noroeste Amazônico brasileiro. O evento reunia lideranças e representantes de todas as aldeias localizadas nas TI Paraná do Boá-Boá e Uneiuxi, território tradicional nadëb onde vivem, atualmente, também algumas famílias kanamari. O evento contava, ainda, com a participação de instituições de Estado, organizações indígenas e não-indígenas que apoiavam a iniciativa como FUNAI, ACIMRN, COIAB, ACT-Brasil e CIMI[1]. Era a primeira vez que uma atividade reunia todos esses atores em torno da discussão sobre a gestão territorial da TI.
Era um momento potente e desafiador para os indígenas, porque trazia a complexidade de elaboração de um planejamento coletivo, construído a partir das muitas perspectivas – nem sempre convergentes – sobre seu território. Pairava uma certa ansiedade no evento, e haviam muitas dúvidas entre os participantes, porque os Nadëb e os Kanamari enfrentavam o desafio de imaginar e refletir sobre seu território a partir de linguagens, mecanismos e ferramentas formuladas para mediar a comunicação com o Estado e outros atores. Tais elementos, por sua vez, constituem etapas de um processo instaurado por uma política pública – a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas, a PNGATI.
Já no terceiro dia da oficina, foi aberto um espaço para que os participantes comentassem o processo que estavam vivendo e o que consideravam estar em jogo nas discussões desenvolvidas até ali. Em certo momento, Luizito Camargo, tuxaua da aldeia Deus Proverá, tomou a palavra e, assim como outros chefes que já tinham discursado naquele dia, chamou atenção para o fato de que aquele encontro era uma oportunidade para que aprendessem com as histórias narradas pelos anciãos, os “antigos” que ainda estavam vivos. O líder nadëb compartilhou com os presentes histórias que ouvira de seu pai e de seus tios, que remontam à década de 1950, quando então os brancos começavam a circular de maneira mais intensa no interflúvio Japurá-Negro, território tradicional nadëb. Luizito contou como os brancos trouxeram as armas de fogo, falou sobre os patrões e a extração da seringa. Assim como outras falas proferidas naquele dia, o chefe nadëb chamava atenção para as ameaças que os brancos historicamente representaram para a vida dos Nadëb em seu território e sobre os desafios de se conviver com eles. O tuxaua, então, terminou seu discurso com as seguintes palavras:
– Os tuxauas antigos mesmo já morreram. Hoje nós estamos aprendendo com os antigos que ainda estão aqui. Mas tem os filhos, os netos, assim como eu estou aqui. A cultura, ela faz parte da nossa convivência, do dia a dia. A cultura, ela traz alegria pra nós. Quando nós fazemos festa de matrinxã, ela tá dizendo que nós temos comida com fartura naquele ano, tá dizendo que nós temos alegria, que nós temos saúde, assim nós vamos vivendo! Aí, o povo Nadëb, eles vão se alegrando, aí a geração nova vai aprendendo.
O modo como Luizito finalizou sua fala pública é um ensinamento profundo, e complexo, sobre as relações que os Nadëb estabelecem com o território em que vivem. Neste trecho transcrito, o chefe nadëb faz uma associação entre território e cultura, entre tradição e transformação. O líder ensinava que o modo de vida indígena atual está relacionado com o saber ancestral de seus avós, mas também com o convívio diário entre parentes. As narrativas do passado, que constroem um território denso de significado, instruem as novas gerações mas também se entrelaçam à vida cotidiana na floresta, no rio, nas roças, na aldeia. O saber é antigo e vivo – portanto nunca estático – e está ligado à alegria, ao bem-estar. Ao falar de alegria, Luizito se referiu também às festas, momentos rituais em que parentes distantes se visitam, ofertam e recebem caça, peixe, frutas coletadas ou cultivadas em seu território, para que todos comam juntos. Celebra-se a abundância de recursos, que garantem a saúde e promovem a vida. Nas palavras de Luizito, a festa é a maneira pela qual a “cultura “diz” isso tudo.
Esta fala sintética do tuxaua evidencia de maneira exemplar que o bem viver indígena está diretamente relacionado ao aprendizado contínuo e ao convívio que formam a “cultura” construída neste território. Seu discurso está muito próximo da perspectiva de várias lideranças indígenas que na extensa luta pela garantia de seus direitos, têm a tarefa de traduzir para os brancos – e para o Estado – o significado e a lógica de sua relação com o espaço em que vivem. Em 1987, durante a Assembleia Nacional Constituinte, o grande pensador e líder indígena Aílton Krenak proferiu uma fala histórica, e contundente, no Congresso Nacional. Naquele momento, os povos indígenas eram vítimas (de mais uma) campanha difamatória articulada por políticos e veículos da impressa que sob o refúgio de um discurso que chamam de nacionalista, negavam o caráter pluriétnico da sociedade brasileira. Em certo ponto de sua fala, Aílton afirmou:
– Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus direitos originários às terras em que habitam – e atentem bem para o que digo: não estamos reivindicando nem reclamando qualquer parte de nada que não nos cabe legitimamente e de que não esteja sob os pés do povo indígena, sob o habitat, nas áreas de ocupação cultural, histórica e tradicional do povo indígena. Assegurar isto, reconhecer às populações indígenas as suas formas de manifestar a sua cultura, a sua tradição, se colocam como condições fundamentais para que o povo indígena estabeleça relações harmoniosas com a sociedade nacional, para que haja realmente uma perspectiva de futuro de vida para o povo indígena, e não de uma ameaça permanente e incessante[2].
As semelhanças entre as falas de Aílton e Luizito são flagrantes. O líder Krenak discursava em defesa dos direitos originários dos povos indígenas às terras que habitam e, para isso, conjugava a ideia de território e cultura, ancestralidade imemorial e contingências históricas, tradição e futuro. Estes seriam, segundo o pensador, elementos fundamentais a formar a relação dos indígenas com sua terra. Já ali, Krenak apontava para a falsa controvérsia imposta por uma ala política que defendia que o direitos originários deveriam estar restritos às terras de posse imemorial habitadas permanentemente pelos indígenas, desconsiderando os deslocamentos históricos a que diversos povos foram obrigados a fazer diante do avanço colonial do Estado. (Como sabemos, um dos desdobramentos desse tipo de argumento desembocou na não menos falaciosa “tese do marco temporal”[3]). Krenak afirmava, portanto, que a ideia de tradição, território e cultura, se entrelaçavam de maneira complexa no tempo e no espaço e que isso deveria ser considerado pelo Estado brasileiro para a definição de uma política indigenista.
Um dos desafios que os povos indígenas enfrentam historicamente é, justamente, traduzir para uma linguagem compreensível para o Estado e outros atores as diferentes dimensões da relação que constroem com o espaço em que vivem. De acordo com os indígenas, território é vida. Não há vida sem território. Para além da dimensão mais óbvia dessa afirmação – para que a vida aconteça é necessário um lugar para ela florescer – há um ponto relacionado à complexidade de relações (humanas e não-humanas) que formam esse território. Essa comunicação com os brancos, como sabemos, não se dá sem lutas, que estão longe de acabar.
Movimento Indígena e pauta ambiental – breve histórico de políticas públicas

A participação do movimento indígena nas discussões e elaboração da Constituição de 1988 é um marco na história do protagonismo dos povos originários e de sua luta pela participação na reflexão, formalização e execução de políticas públicas relacionadas aos seus direitos. Fruto de uma organização política que remonta pelo menos aos anos 1970, a atuação de representantes indígenas em conselhos, comissões e fóruns públicos de discussão é fundamental para os rumos que o indigenismo tomou a partir de então.
Já na década de 1990, havia uma sensibilização internacional em torno da devastação da Floresta Amazônica, que resultou em iniciativas que visavam combatê-la. Um de seus efeitos foi a criação do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7). A ideia do Programa surgiu em 1990, na Convenção de Houston, e foi ratificado na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), a ECO 92. Naquele momento, o Programa surgia como resultado da articulação de povos indígenas e demais atores da sociedade civil, Governo Federal e comunidade internacional que visavam promover a conservação florestal, o uso sustentável de recursos naturais e a melhoria das condições de vida das populações que viviam nesses ambientes. Coordenado pelo Governo Federal, o Programa estabeleceu convênios entre diferentes Ministérios e governos estaduais, municipais e organizações da sociedade civil para realização de ações financiadas pelo G7 e pela União Européia. Os primeiros projetos vinculados ao PPG7 foram aprovados em 1994 e executados em 1995.
Ao menos desde a década de 1970 a pauta da sustentabilidade ecológica vinha sendo incorporada pelo movimento indígena organizado nas discussões em torno de políticas indigenistas. Gradativamente, a discussão pública sobre a sobrevivência e qualidade de vida dos povos indígenas foi associada à conservação ambiental. Assim, em meio ao contexto político dos anos 1990, o tema da gestão ambiental (e sua caracterização) foi incorporado à legislação nos processos de demarcação e identificação de terras indígenas, algo que até então não acontecia. Em 1996, por meio do Decreto nº1775/96 e da Portaria nº14 da FUNAI, o componente ambiental passou a integrar os relatórios de identificação no processo de regularização fundiária dos territórios indígenas. O artigo 1° do decreto institui: “O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação”.
Na esteira desse processo, é criado em 1998 o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL). O Projeto construiu e disponibilizou uma abordagem metodológica que incorporou a perspectiva etnoecológica nos levantamentos ambientais em TIs já demarcadas ou em processo de demarcação na Amazônia brasileira. O método incluía a participação indígena combinada com a atuação de um profissional da área. Em 2004, esta metodologia foi revista e atualizada no documento “Levantamentos Etnoecológicos em terras Indígenas na Amazônia Brasileira: Uma metodologia”. Um das linhas de trabalho do PPTAL foi efetivar a participação dos povos originários na regularização e defesa de suas terras. Para tanto foram realizadas parcerias entre organizações indígenas e da sociedade civil para implementação de projetos de acompanhamento da demarcação e de vigilância dos territórios indígenas.
Deve-se mencionar, ainda, ao menos dois projetos relacionados ao PPG7: o PDPI e o Projeto GATI. O Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas (PDPI) surgiu a partir das discussões encabeçadas pelo movimento indígena organizado da Amazônia em torno da pouca participação dos povos originários em linhas de financiamento de projetos já existentes que potencialmente poderiam contribuir para a qualidade de vida dos povos originários. O debate era um dos efeitos dos trabalhos relacionados ao PPTAL. Se naquele momento se avançava no processo de demarcação, os indígenas apontavam a necessidade de estruturar meios que garantissem a sobrevivência desses povos nas Terras Indígenas. Experiências anteriores haviam demonstrado a dificuldade dos indígenas em acessar recursos de programas como o Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA) de estímulo e financiamento de iniciativas em comunidades da Amazônia e Mata Atlântica. Dessa maneira, o PDPI surge entre 2000 e 2001 como um programa de financiamento de projetos específicos para os povos indígenas.
Finalmente, deve-se ressaltar a criação do Projeto Gestão Ambiental e Territorial Indígena (Projeto GATI), em 2005, que visou o fortalecimento das práticas indígenas de manejo sustentável e conservação de recursos naturais. A origem de sua criação remonta a 2002, em discussões relacionadas à Política Nacional da Biodiversidade (PNB). O Comitê Diretor do Projeto foi instalado em 2010, sendo uma instância paritária composta por membros das associações indígenas de diferentes regiões do Brasil, além de membros da FUNAI e do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Ao longo dos anos 2000, a articulação indígena em torno dos direitos fundiários e correlatos continuou intensa. Em 2004 ocorreu o primeiro acampamento Terra Livre em Brasília, realizado no Abril Indígena. A principal reivindicação que surge desta articulação é a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista. Após muita luta, é criado, em 2006, a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), por Decreto Presidencial. Dentre as atribuições da Comissão estava a elaboração do anteprojeto de lei para criação do Conselho. Em 2007 a Comissão é instalada, contando com a participação de 13 representantes de governo; 20 indígenas provenientes das diversas regiões do país (dos quais 10 com direito a voto) e 2 representantes de entidades da sociedade civil, com a garantia de paridade nas votações. Debates importantes ocorrem no âmbito da CNPI. Por exemplo, as discussões em torno da recém criada Secretaria de Saúde Indígena (SESAI).
A CNPI, promoveu, ainda, seminários regionais com povos indígenas de diferentes regiões do Brasil, que deram base para as discussões em torno da PNGATI. Em 2009, finalmente, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), por meio de Portaria Interministerial (nº 434). Composto por representantes indígenas e membros da FUNAI e do MMA, o GTI foi o responsável por apresentar propostas para a PNGATI. A minuta do Decreto para criação desta Política foi encaminhada à Casa Civil em 2010. Finalmente, a PNGATI foi instituída em 2012, no Governo Dilma, por meio do decreto nº 7.747. Já em seu artigo 1º o decreto define que seu objetivo é “garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física a cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural”.
A partir deste contexto o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) surge como importante ferramenta de implementação da PNGATI. A ideia é que as populações de cada Terra Indígena elaborem seu próprio plano, registrando modos próprios de organização e gestão de seu território[4]. Estes documentos foram concebidos como “instrumentos de caráter dinâmico, que visam à valorização do patrimônio material e imaterial indígena, à recuperação, à conservação e ao uso sustentável dos recursos naturais, assegurando a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações indígenas” (FUNAI 2013: 7)[5].
Na prática, o PGTA se mostrou um processo complexo e extenso, com desafios particularidades a cada contexto étnico e local, em que se busca uma compreensão coletiva sobre o território, que resulte num conjunto de acordos internos sobre a governança indígena. O PGTA é, ainda, um instrumento de reivindicação de políticas públicas que respeite e garanta os modos de vida indígena. Geralmente, o processo de elaboração do documento se dá por meio de reuniões públicas e oficinas realizadas nas aldeias. O desafio, como apontado, é articular um discurso que abranja o passado, o presente e o futuro dos povos indígenas de modo a dialogar com o Estado e outros atores.
A partir de 2015 a articulação pelos direitos dos povos indígenas passa a sofrer um grave revés. Especialmente no Governo Bolsonaro, os povos indígenas foram vítimas de uma política anti-indigenista, que desarticulou uma série de órgãos-chave como a Funai, o Incra, o Ibama, e o ICMBio. O ataque se deu em várias frentes, desde o sucateamento das próprias estruturas destes órgãos, passando pela manutenção dos serviços oferecidos pelas entidades, até a redução drástica de recursos humanos e orçamentários. Os efeitos para os povos indígenas – e para o ambiente em que vivem – foram devastadores. Um panorama deste cenário pode ser lido em artigo nesta edição da revista WANAK, assinado pela analista jurídica da ACT-Brasil, Carla Cetina. Cabe aqui salientar que o Governo Lula, empossado em 2023, tem o dever histórico de promover uma política não só de reconstrução mas de avanço de políticas públicas que efetivamente estejam comprometidas com a pauta indigenista e ambiental. Nesse sentido, deve-se destacar a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que junto da FUNAI passa a ser responsável pela demarcação e proteção dos territórios indígenas a partir de 2023. Foi retomado, ainda, o CNPI, agora vinculado ao MPI, que volta a convocar e coordenar as atividades do Conselho.
Mobilidade e território

A partir deste breve histórico é possível perceber que os avanços em torno da pauta indigenista, ainda que estejam muito aquém de um cenário ideal, demonstram a importância da organização política dos povos indígenas. Aqui reside outra complexidade porque trata-se de uma articulação que contemple a diversidade de etnias existentes no país. O Censo IBGE 2010, registra uma população de cerca de 900 mil indígenas no Brasil, que pertecem a 305 etnias e falam 274 línguas. Destes, estima-se que pouco mais de 572 mil estejam em zonas rurais. Por essa perspectiva, o PGTA apresenta-se como uma possibilidade para que esta variada étnica seja traduzida em documentos distintos, relacionados a modos de vida específicos. Ou seja, se os problemas enfrentados pelos indígenas tem uma base comum (o bem-viver em seu território), as soluções podem variar sobremaneira. Aqui encontramos outro desafio porque, na prática, os Territórios Indígenas são eles mesmos diversos. Pense-se, por exemplo, no Parque Indígena Xingu, TI que possui uma população de mais de 6 mil indígenas, pertencentes a 16 etnias; ou na região do Alto Rio Negro, onde estão 22 povos indígenas, distribuídos, em sua maioria, em 5 TIs; ou ainda no Alto Solimões, região habitada pelo povo Tikuna, cuja população é estimada em cerca de 46 mil pessoas, distribuídas numa área abrangente e transfronteiriça. Assim, os processos em torno do PGTA variam enormemente em abrangência e complexidade, conforme o contexto que se observe.
Voltemos ao processo de elaboração do PGTA TI Paraná do Boá-Boá, apresentado no início do artigo, para ilustrar os desafios inerentes a esse tipo de trabalho. Os Nadëb são um povo que falam uma língua da família linguistica Naduhup, formada também pelos povos Hupd`äh, Yuhupdeh e Dâw, que habitam historicamente o Noroeste Amazônico. Atualmente estes povos vivem majoritariamente em território brasileiro e em menor quantidade na Colômbia. Historicamente, os grupos de fala naduhup habitam o interior da floresta em contraste com grupos arawak e tukano oriental que habitam as margens dos rios de grande e médio porte. Relatos de cronistas do século XIX já registravam a alta mobilidade destes grupos da floresta, o que também contrastava com a estabilidade dos assentamentos das comunidades indígenas erguidas nas margens dos rios.
Nos anos 2000, a partir de uma acordo com os Nadëb, algumas famílias Kanamari, passam a viver na TI. Os Kanamri são falantes de uma língua da família linguísticas Katukina e originalmente moravam na região do alto-médio Juruá. Note-se, portanto, que a partir de então passam a conviver no mesmo território grupos cujas cosmologias e história são muito distintas.
Para além da questão da diversidade étnica, há um desafio muito maior, e mais grave, relacionado ao contexto de violência socioambiental e violação de direitos humanos na região. O território tradicionalmente habitado pelos Nadëb está localizado no interflúvio dos rios Negro e Japurá (afluente do Solimões). Assim, a região está na transição entre as bacias dos rios Negro e Solimões, que formam o Amazonas. Por esse motivo, desde os primeiros séculos de invasão europeia a região foi almejada por portugueses e espanhóis. Seu intuito era consolidar vias de comunicação entre os rios para exploração da mão-de-obra indígena e escoamento de recursos da floresta e dos rios. Assim, desde muito cedo, as coroas disputaram violentamente as fronteiras e limites na bacia do Japurá-Caquetá[6].
Guerras e epidemias se multiplicaram ao longo dos séculos. Para além da redução drástica da população nativa, os efeitos para toda a região foram devastadores. Um deles foi consolidação do rio Japurá-Caquetá como rota para o tráfico e contrabando de escravos e produtos da floresta. Paralelamente, a região é marcada pela ausência ou inépcia de instituições de Estado, que supostamente deveriam evitar a violência generalizada e os crimes ambientais que se espalharam na região. Até o presente, as populações indígenas e ribeirinhas sofrem com a ação de garimpeiros, narcotraficantes, grandes empresários da pesca, dentre outros atores que ameaçam sua vida, exaurem os recursos de sua terra, contaminam rios e trazem uma série de doenças.
Nesse contexto, o PGTA TI Paraná do Boá-Boá ganha mais uma camada de significação, relacionada à garantia da vida humana e não-humana local. O documento permite aos Nadëb e aos Kanamari vislumbrarem um meio pelo qual podem reivindicar seus direitos, combater as ameaças externas e planejarem coletivamente modos de fortalecimento e proteção de seu território. A primeira reunião das lideranças da TI para discutirem o assunto ocorreu ainda em 2021, quando os indígenas decidiram convidar a ACT-Brasil e a COIAB para apoiar a iniciativa. Em 2022 foi realizada a primeira oficina, já com a presença de entidades parceiras, em torno do Eixo Temático da Saúde e da Medicina Indígena. Nesta ocasião, foram definidos, ainda, os eixos temáticos que conduzirão as próximas etapas do trabalho. Serão discutidos temas como Educação, Governança, Manejo, dentre outros.
Para além do documento final, o próprio processo de discussão e elaboração do PGTA é particularmente importante. As oficinas são momentos singulares que promovem o encontro de diversas lideranças que por habitarem localidades afastadas do território, muitas vezes não podem se encontrar com a frequência desejada. Além disso, estes evento promovem uma troca intergeracional, quando os mais jovens ouvem narrativas sobre os antigos e conversam sobre as práticas ancestrais. Os indígenas demonstram, ainda, a preocupação em promover uma paridade entre os participantes. Assim, mulheres e jovens são incluídos e atuam de forma ativa nas discussões. A preocupação, neste caso, é promover um debate, e construir um documento, a partir de uma olhar plural sobre o território.
Na mesma reunião descrita no início deste texto, Joaquim Batista, tuxaua da aldeia São Joaquim, contava para seus parentes sobre o modo de vida dos antigos. Joaquim destacou a importância da organização nadëb na luta por suas terras, que remonta à década de 1980, e que resultou na demarcação das Terras Indígenas Uneiuxi e Paraná do Boá-Boá nos anos 1990. Para além da dimensão jurídico-administrativa relacionada aos direitos fundiários de sua terra, o chefe nadëb destacou a importância da sabedoria dos antigos sobre a vida na floresta. Joaquim ressaltou que a interação com sua terra – que os brancos nomeiam de “autogestão territorial e ambiental” – é algo sabido por seu povo desde tempos imemoriais. Parte do conhecimento adquirido pelos indígenas sobre a vida construída em seu território é construído por meio de narrativas dos antigos, mas não só. Um dos pontos fundamentais desse conhecimento, segundo Joaquim, reside justamente nesse modo particular dos Nadëb de habitarem a terra, estruturado na mobilidade espacial.
– Então isso é cultura deles mesmo. Cada família vivia em um igarapé. Aquela família morava no igarapé, outra família no outro Igarapé… é por isso que tem muitas aldeias. Bem aqui pra trás, se vocês foram já lá, tem uma capoeira enorme, onde eles festejavam. Pra vocês conhecerem sua terra, vocês têm que andar, têm que andar.
A fala de Joaquim é um lembrete não só para seus parentes, mas para os parceiros e para o próprio Estado: aquilo que os indígenas traduzem para o papel é uma pequena – e fundamental – dimensão de um conhecimento abrangente e vivo, que se sustenta na interação contínua com a terra e com a pluralidade de vidas que a formam.
[1] As siglas correspondem, respectivamente a Fundação Nacional dos Povos Indígenas; Associação das Coordenações Indígenas do Médio Rio Negro, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira; Amazon Conservation Tema-Brasil; Conselho Indigenista Missionário.
[2] Remeto o leitor à publicação “Invocação à Terra – Discurso de Aílton Krenak na Constituinte”, onde está registrada a íntegra do discurso de Krenak, com comentários de Pedro Mandagará. Disponível em: https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2021/07/CADERNO27_CONSTITUINTE.pdf
[3] A “tese do Marco Temporal” defende a restrição das demarcações de terras indígenas no Brasil a áreas que estivessem comprovadamente sob posse de povos indígenas em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal. O argumento desconsidera os direitos originários destes povos, anteriores à própria presença do Estado. Em 2022 houve uma grande mobilização do movimento indígena para que o Supremo Tribunal Federal julgasse o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discute a reintegração de posse movida contra os Xokleng, em Santa Catarina. O julgamento trará consequências para todos os povos indígenas no Brasil. Contudo, o Recurso não foi julgado até o presente.
[4] Em 2013 o Governo Federal, por meio da FUNAI, disponibilizou um documento de orientações para elaboração dos PGTAs. O documento sintetiza o processo de articulação promovido entre o movimento indígena e o Governo, e expõe a perspectiva deste último sobre o tema. Disponível em: http://cggamgati.funai.gov.br/files/6413/8685/5847/Cartilha_PGTA.pdf
[5] “Plano de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas: Orientações para Elaboração. – Brasília: FUNAI, 2013”.
[6] O rio Japurá nasce em terras colombianas onde recebe o nome de Caquetá.